sexta-feira, maio 11, 2007

Os pontos nos "ii"



"Vai praxatear outro!"


Começo por pedir as minhas mais sinceras desculpas pelo atraso deste post, mas obrigações académicas não me permitiram escrever antes. Creio que não será preciso desenvolver muito este tema porque estaremos todos mais ou menos na mesma situação…

Hoje apetece-me escrever sobre aquele que considero ser o fenómeno mais estúpido das Universidades portuguesas: as praxes. Sei que isto pode ferir susceptibilidades mas, aí está, já disse, a praxe é estúpida. E se é estúpida em qualquer ponto do país, em Lisboa é ainda mais porque se auto-intitula “tradição académica” mas de tradicional não tem nada. Perguntem aos vossos pais, se eles tiverem estudado em Lisboa, se andavam para aí todos contentinhos de traje ou se atormentavam os caloiros nos primeiros dias de aulas. A resposta será certamente esta: não.

Pois é, meus senhores, doa a quem doer, a praxe não é uma coisa de Lisboa, não é uma tradição académica lisboeta. É-o em Coimbra, sim, mas não em Lisboa nem em qualquer outra cidade do país. A praxe foi trazida de Coimbra para Lisboa nos anos 80, portanto, desculpem-me, mas, de tradicional, pelo menos aqui, não tem nada.

Comecemos pelo traje. O traje surgiu em Coimbra como forma de permitir aos estudantes mais pobres ir às aulas. Para assistir às aulas, os lentes exigiam que os estudantes usassem fato e gravata e, portanto, o traje era uma forma de os estudantes mais pobres terem uma indumentária que lhes servisse para todo o ano. No Inverno usavam a capa, no Verão ficavam-se pela batina. Por solidariedade académica ou talvez para se confundirem com a multidão, mesmo os alunos mais abastados começaram a usar também o dito traje. E tornou-se tradição. Em Coimbra…

Acontece que hoje em dia já nem em Coimbra o traje é usado no dia-a-dia, tendo-se convertido numa forma mais ou menos pirosa de dizer “sou estudante universitário”. Ou seja, aquilo que começou por ter uma função social relevante de aproximação de classes converteu-se numa afirmação social de uma elite intelectual.

Passemos à praxe propriamente dita. Na nossa Faculdade as coisas até são mais ou menos civilizadas mas, ainda assim, não me parece nada bonito que numa Faculdade de Direito se faça os caloiros gritarem que não têm personalidade jurídica ou que se obrigue os ditos caloiros a usar umas orelhas de burro no Anfiteatro 1, enquanto ouvem um palerma qualquer dizer umas larachas, sendo que na maior parte das vezes a tarde vai longa e ainda nem almoçaram. Não sabem nada de Direito, daí as orelhas, dizem-me. Se soubessem, creio que não precisariam de ingressar na Faculdade…

Quando fui praxada entrei em hipoglicemia por estar sem comer até às 19h. Quando comecei a sentir-me mesmo muito mal dirigi-me a uma tertuliana que foi suficientemente idiota para não perceber que eu tinha mesmo de ir comer, sob pena de desmaiar. Deve ter percebido que a caloira não era assim tão piegas quando me viu cair redonda no chão…

Dizem-me que a praxe integra. A praxe integra em quê? Na obediência, no servilismo, na subserviência? Ou será antes uma oportunidade de o veterano dar azo às suas frustrações? Sou assumidamente anti-praxe, anti -“tradição académica”. Mas fui praxada. Senti na pele o que é ser sujeita a uma prática que considero profundamente humilhante e hoje se falo, faço-o com propriedade. Abomino a praxe. Abomino-a como socialista, como mulher de esquerda, mas sobretudo como aluna da Faculdade de Direito de Lisboa.

Nunca mais fui à Faculdade no primeiro dia de aulas porque me recuso a compactuar com a lógica da praxe de praxar porque fui praxada. É preciso quebrar este ciclo vicioso! É preciso dizer não!

Termino citando um episódio contado por Pilar del Rio, mulher de Saramago, numa entrevista à RTP2. Na cerimónia de doutoramento honoris causa do seu marido, em Coimbra, constatou Pilar que as mulheres eram relegadas para uma espécie de galinheiro no topo da sala, quando havia ainda muitos lugares livres em baixo, com boa visibilidade para a cerimónia. Quando perguntou a duas alunas o porquê desta discriminação, responderam-lhe que era tradição e que também ela teria de assistir lá em cima. Indignada, recusou-se a aceitar a imposição e assistiu ao doutoramento junto dos homens, numa das filas da frente.

E eu pergunto: é este tipo de tradição que queremos manter? Quantas Pilares del Rio serão necessárias para mudar este estado de coisas?

Choca-me profundamente ver pessoas de esquerda compactuarem com este tipo de rituais retrógrados e reaccionários. O 25 de Abril aconteceu há trinta e três anos e foi para todos! Mesmo para os caloiros. E a propósito, os caloiros, têm, sim, personalidade jurídica e, como tal, merecem ser tratados com a dignidade e respeito que o Direito reserva à pessoa humana…

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4 Comments:

à s 15 de maio de 2007 às 11:43, Blogger Fábio Gomes Raposo escreveu...

A praxe, com ou sem tradição, é um evento de convívio e interacção de todos os alunos. Entre caloiros e entre caloiros e veteranos.
As coisas não podem ser só feitas por serem tradicionais. Assim, trouxe-se a praxe para Lisboa e bem, na minha opinião.

A praxe é uma coisa única, que só se vive na faculdade e pela qual, em princípio, uma pessoa passa no máximo uma vez por ano.
As praxes podem ser divertidas e didácticas e traduzem um excelente espaço de convívio, interacção e criação de laços entre os intervenientes.

Falar do tipo de praxe que se pratica na nossa faculdade em específico será outra questão.
Quanto a sermos de esquerda e
"compactuarmos com este tipo de rituais retrógrados e reaccionários", fui orgulhosamente praxado. Mas fui às praxes convicto de que se alguém "abusasse" ia ter sarilhos. Fiquei com pena de não terem sido mais audazes na minha praxe.
E é com o mesmo orgulho que, ano após ano, praxo os caloiros que entram na FDL. E sei bem das amizades que já criei por isso.

Claro que é como tudo na vida. Há quem goste e quem desgoste.

Beijo

 
à s 15 de maio de 2007 às 11:50, Blogger Fábio Gomes Raposo escreveu...

E lamento, realmente, o que se passou no teu dia de praxe. É impossível estar de acordo com esse tipo de comportamentos. A praxe não é isso. Não é fechar os alunos num anfiteatro, como se fossem bichos. Não é haver veteranos sem a sensibilidade necessária para perceberem os caloiros e colocarem-se no lugar deles, criando empatia.

Nas praxes arranjam-se padrinhos e madrinhas que devem ajudar para todo o curso. Salta-se, bebe-se, come-se, canta-se, conhece-se pessoas, joga-se, diverte-se. Pelo menos, devia ser assim.

Talvez escrevas o post influenciada pela tua má experiencia...Não sei. Mas lamento. Por ti e por todos os outros alunos com praxes desse género.

Beijinho*

 
à s 19 de maio de 2007 às 10:32, Blogger Flecha Ruiz escreveu...

Sou praxado desde os 10 anos! E eu fui praxado no Colégio Militar, durante os 5 anos que lá andei e, como calculam, não foram praxes mansinhas...

Mas foram praxes que ajudaram em muito e com muito! A praxe é, muitas vezes, mal percebida por aqueles que a fazem e mal interpretada por aqueles que a sofrem. Tal como o Fábio sinto-me orgulhoso em ter sido praxado e orgulhoso em praxar.

E acho que há coisas que ainda muito pouca gente se inteirou...sabem que o praxado continua a pensar por si próprio? Se o praxado quer, o praxado sai! Sempre respeitei isso...sempre respeitaram isso quando me praxavam. Se alguém não respeita isso, então lá estão os sarilhos.

Lamento pelo que aconteceu na tua praxe e por todos os erros que já foram cometidos. Agora cabe-me, como veterano que não usa o traje desde Outubro e se sente como se faltasse um bocado da alma, alterar isso, ou fazer por alterar.

E se queres que te diga, nunca vi NINGUÉM que fosse contra as praxes na FDL a evitar alguns abusos contra quem, supostamente, não se pode defender.

As praxes na FDL sao más porque a Louvadíssima Tertulia as estraga. PONTO!

 
à s 15 de fevereiro de 2008 às 21:16, Anonymous Anónimo escreveu...

Levantaste umas boas questões Inês.
Em que é que a praxe integra?
E respondeste correctamente: na obediência, no servilismo, na subserviência.
A praxe trata-se de um jogo de autoridade: um manda, o outro obedece. É castradora da liberdade individual do caloiro e, como se trata de um jogo com características muito bem definidas, do próprio veterano.
Não é admissível, é mesmo demagógico, dizer que a praxe é voluntária. É preciso ter muita força de vontade e de espírito para a conseguir recusar isoladamente. O medo de ficar sozinho acontece quando se decide se se quer ser praxado ou não.
Este jogo de poder está apenas limitado pelo discernimento individual de quem exerce a autoridade. Os "códigos" e "tribunais" de praxe não são órgãos fiscalizadores da rectidão da praxe uma vez que compactuam com eles, por isso não podemos esperar deles uma atitude de isenção.
É este tipo de tradição que queremos manter?
Não, não é, nem pode ser.
Se se pode admitir o direito a ser praxado, já não se pode reconhecer o direito de praxar seja quem for. Ninguém tem o direito de fazer outro o seu pau-mandado, seja em que condições for.

 

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