Sentenças
Odeio rotina e tento evitá-la ao máximo. Dentro do possível, levo uma vida de improviso. No entanto, há situações que me são comuns quase todos os dias...
Acordo cedo, vou de metro para a Faculdade. Um senhor invisual e sem um braço pede caridade. Sem querer, dá um encontrão em alguém que lhe responde mal. Engulo em seco. Se tiver uma moeda, coloco-a no copo do pedinte.
Chegado ao destino, os professores continuam de nariz ao tecto. Os meus colegas queixam-se de que é necessário pagar as propinas para fazerem exames e não sabem onde vão orientar o dinheiro. Anuio. Nem são pessoas pobres, por isso estranho. Talvez sejam as propinas que são altas de mais. Recordo alguns amigos da Margem Sul que deixaram a escola por não terem condições para estudar. "Ninguém ficará sem estudar por razões económicas", dizia-se há 4 ou 5 anos, quando o valor das propinas disparou. Mentiroso.
Depois de almoço passo pelo Pingo Doce. Procuro comida para matar a fome no trabalho. À entrada existe um idoso de boné para trás e cabeça baixa. Não lhe consigo ver o rosto, mas a imobilidade da sua mão estendida deixa-me entorpecido.
Entro no trabalho. Ao fundo ouço um colega a falar alto com o responsável: "Você não pode fazer isso, não vem no contrato! Vou ao Tribunal do Trabalho!".
Habituado, sento-me a atender telefonemas.
- Primeira chamada "Eu preciso trabalhar! Activem-me o cartão imediatamente porque estão a causar prejuízo à minha empresa!" respondem-me quando informo que não consegue fazer chamadas por ter uma factura por liquidar.
- Chamada(s) seguinte(s): "Veja porque tenho esse saldo"; "Não fiz tantas chamadas"; "Paguei o serviço e não o consigo utilizar"; "Preciso só de 50 centimos no cartão para fazer uma chamada porque a minha bebé está doente. Por favor!"
Não são todas assim, mas fico com pena dessas pessoas. Ajudo no máximo que puder, mas estou ali para ajudar a empresa. Sentimentalismos colocam-me no desemprego.
Quando volto para casa de comboio há alguém que perdeu o bilhete. Custa 1,30e mas terá de pagar uma multa de 50e. Os fiscalizadores não acreditam na desculpa. O diálogo é impossível. "O auto chegará à sua morada", avisam indiferentes. Fecho os punhos.
Após o comboio, conduzo alguns kms da estação para casa. Fico sem gasolina a meio do caminho. Encosto o carro à berma e profiro um grito asneirento. Prossigo a pé, chego a casa e durmo sem jantar. Andar 3kms à 1h da manhã faz perder a fome.
Este é apenas um dia, como existem muitos outros. E ser de esquerda não é um estatuto nem uma condição. Ser de Esquerda é ter vivido dias destes durante 21 anos. Ser de Esquerda é parte daquilo que sou.
Acordo cedo, vou de metro para a Faculdade. Um senhor invisual e sem um braço pede caridade. Sem querer, dá um encontrão em alguém que lhe responde mal. Engulo em seco. Se tiver uma moeda, coloco-a no copo do pedinte.
Chegado ao destino, os professores continuam de nariz ao tecto. Os meus colegas queixam-se de que é necessário pagar as propinas para fazerem exames e não sabem onde vão orientar o dinheiro. Anuio. Nem são pessoas pobres, por isso estranho. Talvez sejam as propinas que são altas de mais. Recordo alguns amigos da Margem Sul que deixaram a escola por não terem condições para estudar. "Ninguém ficará sem estudar por razões económicas", dizia-se há 4 ou 5 anos, quando o valor das propinas disparou. Mentiroso.
Depois de almoço passo pelo Pingo Doce. Procuro comida para matar a fome no trabalho. À entrada existe um idoso de boné para trás e cabeça baixa. Não lhe consigo ver o rosto, mas a imobilidade da sua mão estendida deixa-me entorpecido.
Entro no trabalho. Ao fundo ouço um colega a falar alto com o responsável: "Você não pode fazer isso, não vem no contrato! Vou ao Tribunal do Trabalho!".
Habituado, sento-me a atender telefonemas.
- Primeira chamada "Eu preciso trabalhar! Activem-me o cartão imediatamente porque estão a causar prejuízo à minha empresa!" respondem-me quando informo que não consegue fazer chamadas por ter uma factura por liquidar.
- Chamada(s) seguinte(s): "Veja porque tenho esse saldo"; "Não fiz tantas chamadas"; "Paguei o serviço e não o consigo utilizar"; "Preciso só de 50 centimos no cartão para fazer uma chamada porque a minha bebé está doente. Por favor!"
Não são todas assim, mas fico com pena dessas pessoas. Ajudo no máximo que puder, mas estou ali para ajudar a empresa. Sentimentalismos colocam-me no desemprego.
Quando volto para casa de comboio há alguém que perdeu o bilhete. Custa 1,30e mas terá de pagar uma multa de 50e. Os fiscalizadores não acreditam na desculpa. O diálogo é impossível. "O auto chegará à sua morada", avisam indiferentes. Fecho os punhos.
Após o comboio, conduzo alguns kms da estação para casa. Fico sem gasolina a meio do caminho. Encosto o carro à berma e profiro um grito asneirento. Prossigo a pé, chego a casa e durmo sem jantar. Andar 3kms à 1h da manhã faz perder a fome.
Este é apenas um dia, como existem muitos outros. E ser de esquerda não é um estatuto nem uma condição. Ser de Esquerda é ter vivido dias destes durante 21 anos. Ser de Esquerda é parte daquilo que sou.
Etiquetas: Sentenças
3 Comments:
Grande texto!!um dos melhores deste blog
Muito bem.
Há três condições para se hoje em dia se fazer a diferença pela positiva na política: trabalho, inteligência e paixão.
Das primeiras duas quem te conhece minimamente sabe que não faltam, da segunda basta este texto.
Um abraço.
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