sexta-feira, setembro 07, 2007

Os pontos nos "ii"

O quarto mundo ou as calças de bombazina cinzento antracite
- Ó menina, veja lá se me arranja assim umas calças de bombazina cinzentas, mas cinzento antracite que de cinzento rato não gosto!
Olhei para ele com olhos incrédulos. Aquele homem, cuja maior preocupação naquele momento deveria ser arranjar uma forma de não morrer gelado no frio cortante das noites de Dezembro da capital, queria umas calças de bombazina cinzentas. Cinzento antracite. Ele já não era novo. Sabe-se lá se passaria daquele Natal. Aquele era um dos Natais mais frios de que havia memória até então na cidade que me vira nascer e que, ao que tudo indicava, veria aquele sem-abrigo morrer em breve. De frio. A insistência estridente da sua voz pôs fim aos meus devaneios.
- Ó menina, veja lá isso!
Sim, as calças. Volto já. Que demónio seria cinzento antracite? Subi as escadas que levam ao primeiro andar da cantina velha, naquela tarde de 24 de Dezembro transformada em armazém de camisas, camisolas, almofadas, cobertores, sapatos, meias, collants para as senhoras, casacos,xailes, abafos vários. E calças. Haveria para ali calças de bombazina cinzento antracite? O absurdo do pedido desceu sobre mim e comecei a rir-me sozinha, enquanto tentava descobrir quais daquelas calças seriam cinzento antracite de entre a pilha das calças de homem.
É incrível as porcarias que as pessoas são capazes de doar quando ouvem falar em sem-abrigo. Na tarde anterior tinha estado a ajudar na triagem durante algumas horas mas tive de sair mais cedo, tão grande era a minha revolta perante a "generosidade" natalícia dos lisboetas: sapatos com buracos na sola nos quais cabiam à vontade dois dedos, meias rotas no dedo grande, camisas ostensivamente manchadas de lixívia e sem um único botão, luvas sem par. Se vivem na rua, que diferença faz?, deveriam eles pensar ao desfazer-se daqueles trastes. É claro que também havia quem desse roupa realmente quente e quase nova. A roupa que vinha num dos sacos tinha até as etiquetas ainda.
Para mim, naquele momento, nada mais interessava do que as tais calças de bombazina cinzento antracite. Era como se por um momento aquele velho sem-abrigo, doente e decrépito, fizesse realmente parte da sociedade, como se também ele tivesse direito a ser um consumidor exigente. Eu ia achar as tais calças, nem que passasse ali o resto da tarde.
Daí a pouco começariam os preparativos para a ceia de Natal, oferecida aos sem-abrigo pela Câmara Municipal de Lisboa. Bacalhau, é claro, como manda a tradição. Mas então lembrei-me dos milhões de pessoas por esse mundo fora que nem isso teriam naquela noite - uma ceia de Natal mais ou menos insípida servida num tabuleiro de uma cantina universitária. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Enxuguei-os com a ponta da manga e pensei que pelo menos uma dessas pessoas hoje seria feliz. Se ao menos eu encontrasse as calças!...
Que houvesse pessoas a morrer à fome nos países do terceiro mundo era realmente muito triste, mas que habiantes da minha cidade, cidadãos do meu país, compatriotas meus, se vissem obrigados a dormir ao relento na noite de Natal era revoltante de tão injusto e sem sentido.Ora aí está aquilo a que chamam o quarto mundo, pensei, o terceiro mundo que vive no seio do primeiro, perante a indiferença desse primeiro mundo. No quarto mundo não há contingentes da ONU a fazer uso do direito de ingerência humanitária, nem Princesas a beijar crianças amputadas, nem televisões, nem angariações de fundos. Há apenas a mais perfeita e acabada expressão da falência do Estado social. Mas hoje haveria também calças de bombazina cinzento antracite, pois elas ali estavam!
Quarenta e cinco minutos depois ali estava eu, ofegante,com as calças na mão e um sorriso de orelha a orelha. O velho examinava as calças atentamente. De um lado, depois do outro, de frente e depois de trás. Sentia-me como perante o júri de uma oral.
- Menina, são bonitas, mas não me servem de certeza!

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