
"Vai praxatear outro!"
Começo por pedir as minhas mais sinceras desculpas pelo atraso deste post, mas obrigações académicas não me permitiram escrever antes. Creio que não será preciso desenvolver muito este tema porque estaremos todos mais ou menos na mesma situação…
Hoje apetece-me escrever sobre aquele que considero ser o fenómeno mais estúpido das Universidades portuguesas: as praxes. Sei que isto pode ferir susceptibilidades mas, aí está, já disse, a praxe é estúpida. E se é estúpida em qualquer ponto do país, em Lisboa é ainda mais porque se auto-intitula “tradição académica” mas de tradicional não tem nada. Perguntem aos vossos pais, se eles tiverem estudado em Lisboa, se andavam para aí todos contentinhos de traje ou se atormentavam os caloiros nos primeiros dias de aulas. A resposta será certamente esta: não.
Pois é, meus senhores, doa a quem doer, a praxe não é uma coisa de Lisboa, não é uma tradição académica lisboeta. É-o em Coimbra, sim, mas não em Lisboa nem em qualquer outra cidade do país. A praxe foi trazida de Coimbra para Lisboa nos anos 80, portanto, desculpem-me, mas, de tradicional, pelo menos aqui, não tem nada.
Comecemos pelo traje. O traje surgiu em Coimbra como forma de permitir aos estudantes mais pobres ir às aulas. Para assistir às aulas, os lentes exigiam que os estudantes usassem fato e gravata e, portanto, o traje era uma forma de os estudantes mais pobres terem uma indumentária que lhes servisse para todo o ano. No Inverno usavam a capa, no Verão ficavam-se pela batina. Por solidariedade académica ou talvez para se confundirem com a multidão, mesmo os alunos mais abastados começaram a usar também o dito traje. E tornou-se tradição. Em Coimbra…
Acontece que hoje em dia já nem em Coimbra o traje é usado no dia-a-dia, tendo-se convertido numa forma mais ou menos pirosa de dizer “sou estudante universitário”. Ou seja, aquilo que começou por ter uma função social relevante de aproximação de classes converteu-se numa afirmação social de uma elite intelectual.
Passemos à praxe propriamente dita. Na nossa Faculdade as coisas até são mais ou menos civilizadas mas, ainda assim, não me parece nada bonito que numa Faculdade de Direito se faça os caloiros gritarem que não têm personalidade jurídica ou que se obrigue os ditos caloiros a usar umas orelhas de burro no Anfiteatro 1, enquanto ouvem um palerma qualquer dizer umas larachas, sendo que na maior parte das vezes a tarde vai longa e ainda nem almoçaram. Não sabem nada de Direito, daí as orelhas, dizem-me. Se soubessem, creio que não precisariam de ingressar na Faculdade…
Quando fui praxada entrei em hipoglicemia por estar sem comer até às 19h. Quando comecei a sentir-me mesmo muito mal dirigi-me a uma tertuliana que foi suficientemente idiota para não perceber que eu tinha mesmo de ir comer, sob pena de desmaiar. Deve ter percebido que a caloira não era assim tão piegas quando me viu cair redonda no chão…
Dizem-me que a praxe integra. A praxe integra em quê? Na obediência, no servilismo, na subserviência? Ou será antes uma oportunidade de o veterano dar azo às suas frustrações? Sou assumidamente anti-praxe, anti -“tradição académica”. Mas fui praxada. Senti na pele o que é ser sujeita a uma prática que considero profundamente humilhante e hoje se falo, faço-o com propriedade. Abomino a praxe. Abomino-a como socialista, como mulher de esquerda, mas sobretudo como aluna da Faculdade de Direito de Lisboa.
Nunca mais fui à Faculdade no primeiro dia de aulas porque me recuso a compactuar com a lógica da praxe de praxar porque fui praxada. É preciso quebrar este ciclo vicioso! É preciso dizer não!
Termino citando um episódio contado por Pilar del Rio, mulher de Saramago, numa entrevista à RTP2. Na cerimónia de doutoramento honoris causa do seu marido, em Coimbra, constatou Pilar que as mulheres eram relegadas para uma espécie de galinheiro no topo da sala, quando havia ainda muitos lugares livres em baixo, com boa visibilidade para a cerimónia. Quando perguntou a duas alunas o porquê desta discriminação, responderam-lhe que era tradição e que também ela teria de assistir lá em cima. Indignada, recusou-se a aceitar a imposição e assistiu ao doutoramento junto dos homens, numa das filas da frente.
E eu pergunto: é este tipo de tradição que queremos manter? Quantas Pilares del Rio serão necessárias para mudar este estado de coisas?
Choca-me profundamente ver pessoas de esquerda compactuarem com este tipo de rituais retrógrados e reaccionários. O 25 de Abril aconteceu há trinta e três anos e foi para todos! Mesmo para os caloiros. E a propósito, os caloiros, têm, sim, personalidade jurídica e, como tal, merecem ser tratados com a dignidade e respeito que o Direito reserva à pessoa humana…
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